Sandra Antunes Ramos
Costuremos!
Alberto Tassinari
A nova série de desenhos de Sandra Antunes Ramos utiliza, basicamente, três elementos: 1. um ou dois retângulos em que a cor não é uniforme, mas sujeita a variações de luz, sendo que essa luz pode vir, também, da luz exterior refletida pelo metálico da cor; às vezes, estes retângulos carregam também alguma memória – vagas nuvens, paisagens; 2. a costura de um fio dourado numa grelha de pequenos quadrados que lembra uma cartela de batalha-naval; 3. linhas douradas, também costuradas, que saem da trama quadriculada e entram pelo espaço abstrato, desenhando figuras humanas apenas insinuadas.
A trama quadriculada parece um comentário das abstrações retangulares e dos traços fisionômicos, ou, melhor dito, uma escrita. Estes hieróglifos, que não sabemos de onde vêm, nem o que representam, podem ser vistos como marcações que contam uma coisa depois da outra: uma escrita numérica.
A escrita fonética - que corresponde a sons, diferente portanto daquela em que traços estilizados correspondem a objetos - é uma conquista ocidental que alcançou seu acabamento com os gregos, entre o período homérico e o clássico.
Escrita fonética que em nada se assemelha com a escrita destes desenhos de Sandra Antunes Ramos. No entanto, embora ininteligível, algo como uma escrita se mostra aqui – a ponto de que não seria difícil encontrar, em culturas não-ocidentais, padrões decorativos ou descritivos semelhantes aos destes desenhos.
Foi com a escrita fonética que as artes visuais tomaram para si o domínio das imagens. Não haveria o instante exato em que uma jovem mexe nos fios de sua sandália numa escultura grega (Gombrich) se a imagem não tivesse se tornado totalmente independente da escrita, oferecendo à pintura e à escultura um potencial novo, nunca visto em outra cultura além da ocidental (Leroi-Gourhan).
É assim que os traços entre abstratos e figurativos que surgem das tramas de quadradinhos nos desenhos de Sandra Antunes Ramos assinalam este potencial da imagem autônoma nascendo de uma escrita ainda não fonética – como escrita que parece ser, traços em contraponto ao resto do trabalho. E traços que apontam outras coisas: partes do corpo humano que, ainda se mais abstratas, são também pela mão costuradas.
A oposição entre escrita e figura é coisa grega, coisa nossa, e nestes desenhos também se instaura. Mas não só. Os retângulos abstratos o que dizem? Frutos modernos, nada dizem ou, se dizem, dizem apenas o que dão a ver.
É intrigante essa mistura de uma possível escrita arcaica com o naturalismo visual e com a visualidade moderna. Mistura em tudo contemporânea. Pois o contemporâneo é o moderno depurado, sem predomínios naturalistas ou ópticos, abstratos que sejam. Ou, como estes desenhos mostram, se o naturalismo e a abstração óptica ainda existem, existem apenas como resquício numa estrutura mais complexa.
Tudo costurado - o arcaico, o naturalismo, a modernidade -, juntos inquietam. Dizem no fim das contas muito do que somos hoje. O Ocidente produziu o naturalismo, mas também seu oposto: o contemporâneo. No contemporâneo cabem as diferenças, quaisquer que sejam, ou estes desenhos seriam impossíveis. Impossível a arte.
Mas o contemporâneo nos últimos anos patina por todos os lados. Parece desejar, contra si, o que não há mais: identidades rígidas, se possível A GRANDE IDENTIDADE MASCULINA BRANCA, que foi no entanto ultrapassada em meio à proliferação das diferenças. Sem as quais não há identidades. Nem mesmo a grande identidade acima que, em última instância, quer retornar pela força bruta contra os diferentes, contra a vida do outro, no famoso grito falangista: Viva la muerte.
Ninguém aguentaria tantas diferenças, e entrelaçadas? Essa parece ser a aposta do que é retrógrado mundo afora nos dias que correm. Sobretudo entre nós, pois somos tão ocidentais quanto a mais ocidental das nações, vizinhos no entanto deste outro irredutível a nós, que a nosso lado habita aldeias.
O que dizem esses hieróglifos de Sandra Antunes Ramos? O arcaico? Mas o arcaico está aqui, hoje mesmo, contemporâneo a nós, em nossos povos de origem. Nossos, não. Deles. Arcaicos? Arcaicos para nós.
Mas como lidar com diferenças na saturação atual de identidades que delas provêm, mas que com elas, as diferenças, não dialogam? E o que fazer em tempos onde uma delas, que já foi hegemônica, quer voltar a dominar todas as outras?
Costurando diferenças no mais frágil e mais íntimo? Costurando desenhos intrigantes como as monotipias de Mira Schendel em 1964 (a data não pode ser uma coincidência) sobre a mesa de sua cozinha?
No mais solitário ato estético, como um sismógrafo da sociedade, brotam sinais livres em tempos autoritários. O que fomos, o que somos e o que não somos, todos teriam aqui seu lugar. E têm. Nestes desenhos, têm. Ainda que uma grande massa, em público, deseje a morte das diferenças em convívio; embora deseje apenas o EU, MONOLÓGICO EU, e mal saiba então porque vai ao espaço público, às ruas, o ato de costurar os inclui, como aos demais.
Costuremos!