Nuno Sousa Vieira | “Tenho a vista cansada” | 22 ago - 23 set 2022
Nuno Sousa Vieira | “Tenho a vista cansada” | 22 ago - 23 set
Carta aberta...
A prática artística, assente numa reiterada construção do pensamento e na exploração física de variados materiais na práxis do ateliê, em alguns casos, tem vindo a integrar o uso da palavra. Ele constitui-se como uma estratégia para ampliar as esferas do pensável e do dizível. A escrita de cartas de artista surge, muitas vezes, como um outro recurso para vaguear.
No projeto Tenho a vista cansada, NSV alarga o campo do ver, com recurso também à palavra. Um vislumbre rápido e algo distante pode permitir olhar o todo aqui apresentado e com o observador ficará um eco da sua experiência. Redigindo uma carta aberta com palavras escritas, cores sugeridas e uma geometria inscrita no espaço da Galeria Múl.ti.plo, no Rio de Janeiro, o artista permite-nos voltar sempre que quisermos à obra com a novidade da sua releitura nesse momento. Esta pode ser uma estratégia para escapar ao cansaço...
Porém, a carta aberta não surge em discurso direto, porque se constitui de palavras escritas, que não vemos nunca claramente e por cores que apenas nos são sugeridas ou que somos levados a inferir, porque só as vemos/percecionamos através das superfícies marcadas pelo tempo de uma outra história de vida e de uso, dos vidros acrílicos que as compõem. Riscados, picados e com zonas baças, estes acrílicos sugerem cores características da paleta do artista, que nos conta tê-las recolhido nas memórias visuais e cromáticas do seu ateliê, a Simala, uma antiga fábrica de plásticos em Leiria, no seu país natal, Portugal. E, estas cores, constituintes de composições visuais inquietas e faladoras, surgem sobre uma parede pintada com algumas dessas cores, ali vistas sem filtros. Parecem, por isso, contar-nos que a mesma cor, tal como as mesmas palavras, podem nem sempre ser recebidas e percebidas do mesmo modo. É que a carta parece agora revelar-se acerca desse outro lado, aquele em que “as obras de arte podem ter vidas tristes ou podem até ter medo?₁” como aponta o artista nos postais que oferece na exposição, que dialogam com as obras pictóricas inscritas e instaladas na galeria.
Junta-se-lhes uma geometria, física e conceptualmente, recortada no espaço, pelas diagonais inscritas na pintura da própria parede e pelas que são propostas no esquema de colocação das obras pintadas sobre vidros acrílicos, que surgem fixas na parede inclinadas e encostadas sobre ela, assentes sobre calhas metálicas. Sobre estas estruturas, as pinturas posicionadas face à parede de modo não ortogonal, exibem um ‘espaço entre’ face à parede, do qual parecem ecoar as palavras. Regressemos à carta do artista que afirma que “em arte quer uma visão homotópica”₂ , para pensar que o topos é aqui uma aproximação a um novo conceito de lugar. Este espaço já não é apenas a Galeria Múltiplo porque ele é o lugar da cor, da geometria torta, esquiva, avessa, esquerda e não ortogonal proposta pelo artista. Este é o lugar da leitura da carta que ele nos dirige, se quisermos ousar ‘fechar os olhos para o ver’₃. E, porque quando fechamos os olhos encontramos a nossa história própria de vida, há ainda que acrescentar que o artista é canhoto, escreve e pinta com a mão esquerda, enfatizando a condição do seu olhar e do seu pensamento. A aproximação por semelhança desempenhou um papel relevante e construtivo na cultura ocidental, orientando e normatizando a interpretação dos textos. Neste contexto, diz-nos M. Foucault “A pintura imitava o espaço. E a representação – quer fosse um prazer ou uma lição – oferecia-se como uma repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda a linguagem, a sua maneira de se anunciar e de formular o direito de falar.”₄ Podemos ler a pintura de NSV como um ensaio sempre incompleto desta formulação do direito de falar, requisitando para tal sempre o papel da imaginação como elemento constituinte da semelhança. “Observa-se aqui um duplo requisito: é necessário, por um lado, que haja nas coisas representadas o murmúrio insistente da semelhança, e, por outro lado, que haja na representação o recesso sempre possível da imaginação.”₅
Contudo, é na condição do esvaziamento da presença da palavra, da possibilidade de a ver, de ver a cor ou a forma na sua ortogonalidade, que NSV nos convida a seguir todo o nosso legado cultural para simplesmente acreditar no que não vemos, mas sentimos, ouvimos e percebemos se nos deixarmos ‘tocar’ por este novo lugar. Somos convidados a ler esta carta no esvaziamento dos lugares reais, terrenos, no esvaziamento do túmulo de Cristo, da sua última morada ao ressuscitar, referidos por G. Didi-Huberman, no seu livro O que vemos o que nos olha, no qual o autor afirma “Nada ver, para crer em tudo”₆. Assim, na segunda sala da galeria, o artista expõe o vídeo (1960-2015), que mostra o encerramento da porta do seu ateliê, emparedada com tijolos. A imagem em movimento, relata um acontecimento aparentemente esconso face à carta que o artista nos dirige – o fechamento de um ciclo de trabalho e de vida num lugar, que ficou marcado pela invisibilidade do trabalhador. Diagonal na sua mostra, este vídeo parece falar também da vontade redentora que o artista projeta na arte, quando numa das suas falas refere “quero uma arte que me aconchegue, que me aqueça, que siga de mão dada comigo.”₇
Talvez possamos aproximar-nos deste projeto como uma proposta de vida num novo lugar, esse que a arte inscreve, de modo singular, em cada um de nós.
24 de abril de 2022
Rita Gaspar Vieira
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₁ Frases de Nuno Sousa Vieira – escritas no verso das pinturas.
₂ Frases de Nuno Sousa Vieira – escritas no verso das pinturas.
₃ Frase de Nuno Sousa Vieira – escrita no verso de uma das pinturas.
₄ A frase remete para o inelutável paradoxo da modalidade do visível apontada por J. Joyce no livro Ulisses, com a afirmação “Fecha os olhos e vê.”. J. Joyce (1966). Ulisses. Rio de Janeiro: Ed. Civ. Brasileira, pp. 41-2.
₅ Foucault, M. (1998). As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Ed. 70 LDA., p. 73.
₆ Foucault, M. (1998). As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Ed. 70 LDA., p. 123.
₇ G. Didi-Huberman (2013). O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2ª Ed./1º Reimp., p.42.